Colunistas

A foto imortal

Dorrit Harazim Publicado em: 24 de novembro de 2014

1268708.jpg1268708.jpg

© Robert C. Wiles

 

 

De efeito quase hipnótico, a foto de beleza perturbadora exige mais do que mera contemplação. Quem a vê pela primeira vez é compelido a mergulhar mais fundo, escrutinar cada detalhe, decifrar o oculto por trás do enquadramento perfeito. Passados quase oitenta anos desde sua publicação na revista Life, vitrine mais prestigiosa do fotojornalismo mundial à época, ela continua a gerar impacto instantâneo.

Estampada em página inteira na edição de 12 de maio de 1947 da revista, a imagem tinha uma legenda intrigante: “Ao pé do Empire State Building, o corpo de Evelyn McHale repousa serenamente num grotesco esquife. Ao cair, o corpo estraçalhou o teto de um carro estacionado”.

Um texto de parágrafo único informava o resto. Apesar da brevidade, o conteúdo era extraordinário: Pouco depois de se despedir do noivo, no dia 1° de maio, a jovem Evelyn McHale, de 23 anos, escreveu um bilhete. Acabou por riscar a frase ‘Ele ficará muito melhor sem mim… Eu não seria boa esposa para ninguém’. Depois de subir no deque do observatório do Empire State Building ela procurou o chão 86 andares mais abaixo. Em seguida saltou. Em sua desesperada determinação, impulsionou-se para além dos recuos do prédio e caiu sobre uma limusine das Nações Unidas, estacionada. Do outro lado da rua, o estudante de fotografia Robert C. Wiles ouviu o estrondo. Quatro minutos depois ele fez essa foto de violência e compostura numa morte”.

Mais de sete décadas depois, O mais belo suicídio, como a imagem passou a ser chamada, continua a ser republicada incontáveis vezes. Além de integrar todas as antologias de fotografia do século XX, ela já serviu de inspiração para músicos, poetas, artistas. Andy Warhol foi um dos que dela se apropriou para criar o quadro Suicide (The Fallen Body), da sua série de múltiplos. A foto também chegou a ser usada em publicidade: a capa do catálogo de outono 2011 do magazine americano Neiman Marcus retratou a atriz Drew Barrymore em pose e composição semelhantes.

Ironicamente, a foto que cresceu em fama e se tornou cultuada mundo afora adquiriu vida própria à revelia do autor, de quem nunca mais se ouviu falar. O mais belo suicídio terá sido a primeira e única fotografia publicada por Robert C. Wiles. Na época ninguém parece ter se interessado em saber mais sobre o jovem aspirante a fotógrafo que o destino colocara na esquina da Quinta Avenida com a rua 34. Tampouco foi registrada sua narrativa do que sentiu e como reagiu ao que viu. Em contrapartida, a publicação do instantâneo desencadeou um interesse insaciável e duradouro por aquela desconhecida de destino tão trágico. Serviu de combustível inesgotável à imaginação.

Quem seria aquela bela adormecida que saltara para a morte de uma altura de 301 metros? Peritos estimaram em dez segundos a duração da queda até o baque sobre a limusine estacionada na rua. Na foto, o corpo caído repousa intacto em meio ao metal retorcido. A fisionomia de Evelyn é de uma placidez desconcertante. A jovem mantém as pernas recatadamente cruzadas e a mão esquerda, enluvada, toca de leve o colar de pérolas também intacto. Não fosse pelas meias de nylon que lhe descem sobre os pés descalços, nada está em desalinho no flagrante imortalizado por Wiles.

Mas a realidade de uma foto não ultrapassa seu instante. Pelo relato dos jornais, a composição harmoniosa se desintegrou por completo pouco depois, no momento da remoção do corpo. As vísceras estavam liquefeitas.

Até aquele dia fatídico a vida parecia sorrir para Evelyn McHale. Bem nascida, bonita e elegante, a jovem estava de casamento marcado para junho de 1947. Caçula de sete irmãos, ela nascera em Berkeley, Califórnia, mas cresceu na Costa Leste, entre Washington e Nova York. Era pré-adolescente quando a mãe se desligou da família, pediu o divórcio por motivo não revelado e abriu mão da custódia dos oito filhos, que foram educados pelo pai. Após completar o ensino secundário no auge da II Guerra, Ebby, como era chamada, alistou-se no recém-criado e polêmico Programa Militar para Mulheres. Ao concluir o tempo de serviço, incinerou o uniforme sem explicar por que e foi morar em Nova York com um dos irmãos. No mesmo ano em que começou a trabalhar numa gráfica conheceu o jovem de quem ficaria noiva, Barry Rhodes, recém-liberado da Força Aérea americana e estudante de uma universidade da Pensilvânia.

No dia 30 de abril, Evelyn decidiu visitar o noivo no campus para comemorar o 24° aniversário do jovem. Na manhã seguinte embarcou cedo para Manhattan, numa viagem de trem de pouco mais de uma hora. “Quando nos despedimos com um beijo”, contou Barry, “ela estava alegre como qualquer jovem às vésperas do casamento”.

Em vez de voltar para casa, porém, Evelyn registrou-se no hotel Governor Clinton, situado na Sétima Avenida, a três quadras do Empire State Building. Foi no quarto do hotel que redigiu o bilhete de despedida. Às 10h30, estava na bilheteria do célebre arranha-céu de estilo art déco e comprou o bilhete de acesso ao observatório panorâmico do 86° andar. Dez minutos depois, um guarda de trânsito de plantão na esquina da Quinta Avenida com a rua 34 avistou uma echarpe branca flutuando no alto do prédio. O potente estrondo que se seguiu, ouvido a quarteirões de distância, assinalou o impacto do corpo de Evelyn sobre um Cadillac estacionado. Wiles conseguiu captar a cena quatro minutos depois. Das várias chapas batidas pelo estudante de fotografia, a revista Life comprou todas. Optou por publicar apenas uma.

O primeiro detetive a chegar ao observatório para vistoriar a cena ainda encontrou sobre a mureta protetora o capote de tecido claro que Evelyn dobrara com zelo, além de um nécessaire com fotos da família da jovem e uma carteira preta contendo o bilhete de despedida. “Não desejo que ninguém da família nem fora dela veja qualquer parte de mim”, dizia um trecho. “Peço que destruam meu corpo por cremação. Peço a vocês e à minha família: não façam qualquer serviço fúnebre para mim. Digam a meu pai que tenho tendências em demasia da minha mãe”.

Coube a uma das irmãs de Evelyn fazer o reconhecimento do corpo e zelar pelo cumprimento dos pedidos finais: não existe túmulo em nome de Evelyn McHale, não houve homenagem e suas cinzas jamais foram vistas. Mas quem escolhe se ejetar, em plena luz do dia, do monumento arquitetônico fincado no miolo mais densamente povoado de Manhattan não deve esperar ter uma morte silenciosa.

O Empire State Building, cujos 102 andares foram erguidos em apenas 401 dias de trabalho insano, fora aberto ao público em 1 de maio de 1931, exatamente dezesseis anos antes do salto mortal de Evelyn. O colosso de 381 metros fora recebido como símbolo de esperança no país traumatizado pelo colapso financeiro em curso. “E conseguiu alcançar o ponto mais alto do céu no momento mais baixo da Grande Depressão”, escreveu E.B.White. O prédio reinou por 41 anos como o mais alto dos Estados Unidos, até ser ultrapassado pela torre norte do World Trade Center de cruel memória.

Mais de um milhão de pessoas visitaram o observatório do Empire State Building só no seu primeiro ano de funcionamento, entre eles o F. Scott Fitzgerald de “Minha cidade perdida”. Mas o prédio também tem servido de ímã para desesperançados terminais – antes mesmo de ser inaugurado, um operário que ali trabalhara tornou-se a primeira pessoa a saltar do observatório. De lá para cá, outros 36 suicidas escolheram o símbolo da metrópole moderna como trampolim para a morte. O caso mais recente ocorreu em maio de 2010 e teve como protagonista um estudante da universidade de Yale.

Esclarecidos os dados básicos da biografia de Evelyn McHale, e revelada a cronologia factual de seu suicídio, faltava encontrar resposta para a pergunta-chave: o que a levou a escolher a morte?

Quem está mais próxima de equacionar o enigma é Lauren Anne Rice, aluna de criação literária na universidade do Arizona. Lauren nasceu no dia 12 de maio de 1991, exatos 44 anos depois da publicação da imagem-ícone pela revista Life. Hoje Lauren tem 23 anos, mesma idade de Evelyn ao morrer. Desde que tomou conhecimento da foto feita por Wiles, a jovem universitária descobriu-se obcecada pelo caso e passou a varar noites vasculhando a internet em busca de pistas. Encontrou tão pouco que decidiu fazer um estudo mais aprofundado da passagem de Evelyn pela vida. Ao longo de dez meses de pesquisa, Lauren fuçou, investigou, entrevistou, anotou. Percebeu-se pronta para escrever uma biografia.

Como não tinha meios para financiar o projeto (além das aulas na faculdade, ela tem um emprego regular e trabalha como babá nos finais de semana), Lauren acaba de lançar uma campanha de crowdfunding. Nas três primeiras semanas, conseguiu arrecadar 600 dólares, o suficiente para a elaboração da primeira versão do futuro livro. Além disso, recebe orientação editorial gratuita de alguns professores e escritores.

A investigação de Lauren não tomou como ponto de partida a intrigante frase do bilhete de Evelyn, riscado à última hora (Ele ficará muito melhor sem mim… Eu não seria boa esposa para ninguém). Foi outra fase do mesmo bilhete de despedida (Digam a meu pai que tenho tendências em demasia da minha mãe) que despertou na jovem pesquisadora a compulsão por desvendar o enigma. A tese de Lauren Anne Rice é de que Evelyn McHale sofria do transtorno à época ainda não batizado de bipolaridade e que ela, Lauren, conhece a fundo por tê-lo herdade da mãe.

Ainda há muito a desvendar por trás da foto que imortalizou uma suicida até então anônima. Quanto ao garoto de câmera na mão naquela manhã de 1947, são poucas as chances de se saber que destino a vida lhe reservou.///

Dorrit Harazim é jornalista e documentarista brasileira. Nascida na Croácia durante a II Guerra Mundial, talvez venha daí seu interesse pelo papel da fotografia na história e pela história da fotografia como meio de comunicação.

Leia outras colunas de Dorrit Harazim aqui.

Em tempo: mal começou o ano, 2015 já tem um magnífico caso de foto histórica envolvendo personagens anônimos para destrinchar. Trata-se de um insólito flagrante captado no aeroporto de Atlanta pelo mestre Gordon Parks, no ano de 1956 – ou seja, quando as leis de segregação racial nos Estados Unidos ainda estavam em pleno vigor. Da imagem, apesar de memorável e intrigante, nada mais se sabe, o que levou o blog de fotografia do New York Times a lançar o apelo “Ajude a desvendar o mistério sulista de Gordon Parks”. Vale a pena ver a íntegra da matéria escrita pelo coeditor do Lens Culture, James Estrin.