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O enigma Vivian Maier – Parte II

Dorrit Harazim Publicado em: 21 de novembro de 2013
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Imagem do livro “Vivian Maier: Self-Portraits”, fotografias de Vivian Maier, editado por John Maloof (powerHouse Books)

 

A hoje celebrada fotógrafa de rua começou a nascer cerca de um ano depois da morte da babá – quando o descobridor acidental de sua obra postou na internet a primeira centena de imagens que levavam sua assinatura. Elas chamaram atenção, causaram impacto, provocaram emoção, geraram curiosidade. À medida que John Maloof também divulgava os fiapos de história pessoal da autora que ia coletando, Vivian Maier foi adquirindo vida própria.

O reconhecimento oficial veio com a crítica da primeira exposição individual da artista, publicada no New York Times de janeiro de 2011 sob o título “Nova Fotografia de Rua, feita há 60 anos”. “Vivian Maier, sem dúvida uma das fotógrafas de rua mais argutas dos Estados Unidos, foi finalmente descoberta”, dizia David W. Dunlap logo no começo de seu artigo. “A divulgação na web de cada nova imagem causa sensação entre sua crescente legião de admiradores. (Reconheço que estamos nos juntando tarde a essa mesa). As paisagens urbanas da Srta. Maier conseguem captar ao mesmo tempo a forte marca local e os momentos paradoxais que dão à cidade o seu pulso. As pessoas em seus frames são vulneráveis, nobres, derrotadas, orgulhosas, frágeis, tenras e não raro bastante cômicas. A recepção na noite de abertura da exposição no Chicago Cultural Center começará às 17h30. Infelizmente, a Srta. Maier não poderá comparecer. Ela morreu dois anos atrás, aos 83.”

Muito antes de Vivian comprar seu primeiro rolo de filme a rua já havia se consagrado como fonte inesgotável para fotógrafos. Ao contrário dos vilarejos de antigamente, nos quais todos se conheciam, as cidades modernas passaram a oferecer anonimato a quem o desejasse, e material rico a quem tivesse uma câmera à mão. A rua tornou-se o espaço onde se podia fotografar instantes da vida a qualquer hora, através de seu infinito leque de personagens e paisagens urbanas. Bastava ter uma câmera portátil e saber usá-la.

Era o caso da babá Maier, que jamais foi vista sem a Rollei em posição de sentido, por cima do capote ou capa de chuva. Ela a mantinha pendurada no pescoço durante os passeios com as crianças, quando ia ao dentista, em viagens, ao fazer compras, dentro de casa, em expedições de bicicleta. Várias pessoas ouvidas por seus biógrafos contaram suspeitar, à época, que a câmera da babá sequer tinha filme – que ela a portava apenas para fazer gênero. Combinava com suas roupas masculinas e o andar galopante à la M. Hulot.

Na realidade, sua compulsão de fotografar era intensa. Ela só aceitava uma oferta de emprego a depender da distância entre o local de trabalho e o centro da cidade. Consumia todos os horários e dias de folga registrando em fotos o que via, como num diário. A premiada fotojornalista americana Mary Ellen Mark foi admiradora de primeira hora do estilo Maier de olhar. “Os frames são tão espontâneos! Ela capta os momentos reais. Poucas pessoas sabem fotografar desta forma”, surpreendeu-se.

Os atuais proprietários do acervo de Maier puderam constatar o que somente folhas de contato conseguem provar: os momentos decisivos captados pela fotógrafa autodidata não foram fruto de muitas tentativas. Não raro, bastou um take. Material encontrado entre seus pertences também revela que ela saía de sua zona de conforto antissocial para abordar desconhecidos que queria retratar – quanto mais baixos na escala social, mais frequente o interesse e mais fácil a conexão. Uma das singularidades de Vivian Maier é ter sido uma pessoa tão afastada da sociedade e, através da câmera, tão próxima da humanidade.

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Além do lançamento do livro Self-Portraits, com o qual John Maloof revela um lado intimista ainda inédito da fotógrafa, dois outros já tentaram apresentá-la ao mundo. O primeiro, Vivian Maier: Street Photographer, foi editado em 2011 pelo próprio Maloof, e traz texto de Geoff Dyer. O segundo, Vivian Maier: Out of the Shadows (2012), de Richard Cahan e Michael Williams, é uma biografia mais convencional, baseada em entrevistas com praticamente todas as pessoas que tiveram algum contato com a biografada nos Estados Unidos e na França.

Disso emergiu um dado inesperado da vida pessoal dessa babá-fotógrafa tão calada e retraída: em 1959 ela empreendeu um giro de seis meses pelo mundo, algo que poucas mulheres da época fariam mesmo em companhia familiar. Sozinha, Vivian Maier fez uma viagem que a levou a extremos: zarpou de Los Angeles num navio até Manila, nas Filipinas, seguiu para Hong Kong e Macau, depois foi conhecer Xangai e Pequim, dali rumou para Bangcoc e Cingapura, atravessou a Índia, esteve no Líbano e na Síria e visitou Turquia, Grécia e Itália antes de retornar aos Estados Unidos, parando no vale alpino de Champsaur, onde passara a infância. Oito anos antes já tinha dado uma escapulida até Cuba e fizera várias incursões ao Canadá. A julgar por algumas amostras dessas idas a terras estrangeiras, o grosso do material produzido em trânsito pode trazer saborosas surpresas.

O documentário de 84 minutos A fotografia oculta de Vivian Maier, de John Maloof, cuja estreia no Festival de Toronto em setembro e a exibição no Festival de Cinema do Rio logo depois precedem o lançamento comercial – previsto para janeiro de 2014 – e contribuem para ampliar o interesse pela personagem. O trailer do filme dá uma boa ideia da riqueza do material documental coletado por Maloof.

Como tudo o que está relacionado à vida e à obra de Vivian Maier, porém, não há filme ou livro capaz de solucionar o enigma central de sua existência. O que levou essa mulher sem recursos nem formação a fotografar a vida, ao invés de vivê-la? Por que fotografou obsessivamente, mas apenas para si mesma? Por que guardou tudo ao longo da vida, estocando as fotos em gavetas, depósitos de móveis, caixas em garagens? E por que se desfez de tudo, ao final, permitindo que as fotos fossem leiloadas ou jogadas no lixo?

Os biógrafos Cahan e Williams creditam a Maier o “olhar faminto” de Walker Evans, que devora tudo o que vê a sua volta, enquanto o crítico de fotografia e cineasta Allan Sekula, falecido há pouco, percebeu na obra da autoditada algo do olhar de imigrante de Robert Frank. “Consigo imaginá-la como uma Robert Frank feminina, sem um tostão nem bolsa Guggenheim, desconhecida e se sustentando como babá”, observou, ressaltando que a vivência francesa de Maier pode ter feito a diferença em sua percepção da “América” dos anos 1950 e 1960. “Também vejo que ela mostrou o mundo da mulher e das crianças de forma bastante original”.

A fotógrafa documental Dorothea Lange, de memorável obra sobre a Grande Depressão americana dos anos 1930, tinha uma frase de Francis Bacon numa tabuleta afixada à entrada de casa. “A contemplação das coisas como elas são, sem erro nem confusão, sem substitutivo nem impostura, é, por si só, mais nobre do que toda a colheita da intenção. É o respeito pela realidade”. Coincidência ou não, Henri Cartier-Bresson também costumava tirar da cartola a mesma frase do pensador britânico.

Talvez jamais se saberá se Vivian Maier algum dia soube quem foram Langue e Cartier-Bresson, Robert Frank ou Walker Evans. Talvez a epígrafe mais apropriada para ela seja mesmo uma referência a Emily Dickinson, citada em Out of the Shadows. Dickinson morrera deixando perto de mil poemas e centenas de cartas. Deixou instruções à irmã para que a correspondência fosse queimada, mas não mencionou os poemas. A irmã, então, decidiu publicar os versos. Entre eles: “Eis minha carta ao Mundo/Que a mim nunca escreveu”.///

Veja aqui e aqui mais informações e galerias de imagens de Vivan Maier.

Leia também O enigma Vivian Maier – Parte I

Dorrit Harazim é jornalista e documentarista brasileira. Nascida na Croácia durante a II Guerra Mundial, talvez venha daí seu interesse pelo papel da fotografia na história e pela história da fotografia como meio de comunicação.