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Anônimos

Dorrit Harazim Publicado em: 12 de fevereiro de 2015
Elevator - Miami Beach, 1955, Robert Frank

Elevator – Miami Beach, 1955, © Robert Frank, da série The Americans

Exatamente seis décadas atrás, em meio à sua odisseia transcontinental de carro pela América, Robert Frank entrou no elevador de um hotel de Miami, ergueu a discreta Leica no exíguo espaço de que dispunha e captou uma de suas imagens mais célebres. Elevator mostra a jovem ascensorista que operava o painel de botões e a manivela da porta totalmente absorta em seu mundo privado.

Vestida com o uniforme padrão do hotel, a garota tem no olhar uma expressão indecifrável. Melancólica para uns, pensativa e sonhadora para outros, ela aparente estar alheia ao entorno. Talvez refugiada em sonhos, devaneios ou preocupações. Certamente invisível para os hóspedes de casaco de pele e terno que passam por ela como um borrão.

Robert Frank, certeiro, percebeu haver ali não um equipamento do hotel mas um ser humano denso de olhar intrigante e imperscrutável. Bateu quatro chapas. Como em tantas imagens do grande mestre não captou um evento, apenas um momento incerto entre eventos da vida. Ou, na comparação do crítico de arte do New York Times, uma espécie de cena de filme cuja narrativa precisa ser completada para fazer sentido. Nisso reside seu impacto.

Ao longo dos 9 meses em que rodou perto de 16 mil quilômetros e percorreu mais de 30 estados em busca da essência da vida americana, Frank foi amealhando flagrantes inesperados como o da garota do elevador. Ao final do périplo de dimensão e ambição tocquevillianas, o fotógrafo tinha 767 rolos de filme e quase 28 mil chapas para destrinchar. Impiedoso e severo, ampliou pouco mais de mil para uma avaliação final. E destas selecionou as 83 que considerou dignas de constar no livro de fotografia mais influente do pós II Guerra – The Americans. Entre as 83 imagens pinçadas, “A Garota do Elevador”.

Devido ao desconforto inicial dos editores americanos com o retrato de melancolia, alienação, medo, vazio e ocasional alegria captado por Frank, a obra foi publicada primeiro na França, em 1958. Mas no lugar de uma das fotos do autor na capa, uma discreta ilustração de Steinberg.

Para a edição americana que sairia no ano seguinte Robert Frank decidiu pedir a Jack Kerouac, nome maior da geração beat e autor do seminal On the Road, que escrevesse a introdução. Conta a lenda que os dois examinaram as imagens sentados numa calçada de Manhattan, ao final de uma festa.

Kerouac aceitou a tarefa na hora. “Robert Frank, suíço, comedido, afável, extraiu um melancólico poema da América e dele fez um filme com a pequena câmera que ele ergue e clica com uma só mão. Entrou na lista dos trágicos poetas do mundo”, escreveu o desbravador da Rota 66. E conclui a introdução com uma pergunta: “Mando o seguinte recado a Frank: você sabe olhar. E digo mais: aquela ascensorista solitária no elevador cheio de demônios turvos e que olha para o alto como a suspirar – qual o nome & endereço dela?”

O escritor beat morreu em 1967, aos 47 anos, sem que Frank pudesse lhe dar qualquer pista. A curiosidade de Kerouac despertada pela imagem da ascensorista não é incomum. Algumas figuras anônimas que emergem como protagonistas em clássicos da fotografia conseguem capturar nosso imaginário para sempre. A senhorinha de chapéu que lê Le Figaro numa mesa da Brasserie Lipp, numa conhecida imagem de Cartier-Bresson, espia com inveja ou opróbrio a jovem de mini-saia sentada ao lado? Como termina a apocalíptica cena de G.I.s em desespero na selva vietnamita, em 1968, captada por Art Greenspon? Qual a realidade de vida do mexicano em sono profundo numa laje, na foto intitulada El soñador (1931) de Manuel Alvarez Bravo? Quem teria sido? O Desempregado alemão imortalizado por August Sander em 1928 conseguiu sobreviver até quando? Por que sorri o Homem na Rua flagrado em dois momentos por Jeff Wall em 1995? O díspare grupo de pessoas que interagem num banco de praça em Nova York (Feira Mundial, 1964, de Garry Winogrand) lembraria hoje daquele momento?

Em tempos de Facebook, Twitter e redes sociais a probabilidade de algum anônimo em foto icônica não ser identificado em menos de 24 horas é quase nula. No mundo A.D (antes da era digital), contudo, era corriqueiro. Já se passaram 82 anos desde que o New York Herald Tribune estampou a vertiginosa e divertida foto dos onze operários sentados numa viga que parece pairar nas alturas de um prédio em construção. Mas até hoje apenas dois deles, ambos imigrantes irlandeses, tiveram a identidade comprovada e, mesmo assim, somente em 2012.

A americana Sharon Collins, moradora do bairro de Pacific Heights, em San Francisco, é frequentadora de carteirinha do Museu de Arte Moderna da cidade, mais conhecido pela sigla SFMOMA. Quando a instituição inaugurou sua nova sede na virada do milênio, Sharon decidiu se aclimatar logo às mudanças e escolheu u dia inteiro para percorrer andar por andar, sala a sala. Foi quando deu de cara com ela mesma. Ficou parada por uns cinco minutos diante da imagem em preto e branco de Elevator até cair a ficha. A jovem ascensorista era ela aos 15 anos, no comando do elevador do hotel Sherry Frontenac durante as férias escolares de 1955.

Então já casada e mãe de dois filhos, com 45 anos a mais do que quando despertou o faro do fotógrafo, Sharon contou a auto-descoberta apenas à família.

Anos depois, em 2009, o SFMOMA recebeu a exposição itinerante Looking In: Robert Frank’s ‘The Americans’, comemorativa ao cinquentenário da publicação do livro que mudou a história da fotografia. A essência agridoce do trabalho de Robert Frank, que retratou a América como um poema melancólico encharcado de candura, havia sido assimilada pelo país. A mítica editora Steidl de Gottenburgo preparara uma edição comemorativa da efeméride e sucessivas edições convencionais transformaram The Americans em best-seller da fotografia como arte. Enquanto a primeira edição em inglês vendera míseros 600 exemplares, os raríssimos exemplares de 1959 que hoje porventura aparecem no mercado são disputados a tapa. Ainda recentemente um exemplar foi arrematado por $ 6,5 milhões de dólares.

Sharon Collins conhecia o livro mas nunca tinha lido a famosa introdução de Jack Kerouac. Daí a dupla surpresa ao abrir a edição do San Francisco Chronicle que trazia uma crítica da exposição e ver estampada na capa do caderno de cultura não apenas a “sua” foto como o texto que a imagem suscitou no beatnik. Incentivada pela família desta vez decidiu fazer contato com o museu e identificar-se. Coube a Ian Padgham, assistente da direção de Marketing e Comunicação do museu, atender ao inesperado telefonema.

– Alô, meu nome é Sharon e acabo de ver minha foto no Chronicle”, ouviu Padgham. “Eu sou a Garota do Elevador”.

Poucas horas depois Sharon Collins (Goldstein, quando solteira) foi recebida pelos curadores da exposição, que lhe mostraram a folha de contato com as quatro imagens suas feitas sem flash. Relembrou então que quando o elevador se esvaziou dos “demônios borrosos” mencionados por Kerouac, Robert Frank lhe teria pedido para sorrir e colocar as mãos na cintura.

Na hora de fazer a seleção final, contudo, o mestre escolheu mostrá-la enfurnada em pensamento. “Sempre fui uma pessoa bastante divertida, de sorriso fácil e franca gargalhada”, Ou pelo menos costumo ser vista assim”, contou Sharon em entrevista à National Public Radio. “Mas Frank e Kerouac viram algo mais profundo. Não necessariamente solidão. Talvez devaneio”.

Como lembrança do memorável encontro os curadores recriaram a famosa imagem num dos elevadores do museu. Sharon, então com 69 anos, posou para Padgham, que por sua vez fez o clique da foto-memento. E concluiu o relato escrito que fez do episódio com um tweet bem-humorado: @kerouac: name is Sharon, Pacific Heights, and no longer lonely. Adios, King.

Mais ou menos à mesma época o MOMA de Nova York atraía amantes da fotografia com uma grande mostra de Lee Friedlander. Entre os visitantes de primeira hora, dois jovens imaginaram reconhecer o primo Michael Zucker numa das fotos expostas, datada de 1970. Entraram em contato com a galeria que representava a obra do artista e receberam uma amostra minúscula e granulada da foto. O primo até então “anônimo” reconheceu-se de imediato e pediu à galeria uma ampliação maior e de melhor qualidade. Nenhum problema, responderam. Apenas teria de desembolsar $6.500 dólares. “Mas como você está na foto talvez queira ter uma cópia assinada por Lee. Nesse caso o preço da print sobe para $ 10 mil dólares”, ouviu Michael. Para o ex-anônimo foi um desapontamento. “Achei injusto”, postou em rede social, “pois não lhe dei permissão para me fotografar e expor a obra”.

Os anais da fotografia também registram casos inversos: o de figuras públicas submetidas ao constante acompanhamento de um fotógrafo oficial, que sonham em se ver retratadas em momento de liberdade reservado aos anônimos. O exemplo mais delicioso dessa vertente foi protagonizado por Betty Ford, a esposa do 38º presidente dos Estados Unidos Gerald Ford, no seu último dia de Primeira-Dama.

Sempre seguida pelo fotógrafo oficial da presidência Ford, David H. Kennerly, Betty se despediu de todo o staff e fazia o giro final pela ala executiva da Casa Branca quando decidiu espiar pela última vez no histórico Cabinet Room, adjacente ao Salão Oval, cenário das reuniões de gabinete de todos os governos americanos desde 1934. Segundo relato do jovem Kennerly, que à época tinha 29 anos e recebera seu primeiro Pulitzer aos 22, a já quase ex-primeira dama retirou os sapatos, subiu com ligeireza numa cadeira e posicionou-se no centro da mesa oval. “Sabe, David, sempre tive vontade de dançar sobre essa mesa”, disse a ex-bailarina de Martha Graham. Colocou uma mão na cintura, estendeu a outra à sua frente, entrelaçou os pés descalços e fez uma pose sob os candelabros.

A liberdade, enfim, de ser ela mesma. Apenas alguém que amava a dança.///

 

Dorrit Harazim é jornalista e documentarista brasileira. Nascida na Croácia durante a II Guerra Mundial, talvez venha daí seu interesse pelo papel da fotografia na história e pela história da fotografia como meio de comunicação.

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