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A humanidade enjaulada

Dorrit Harazim Publicado em: 10 de novembro de 2015
Exposição <em>Wall on Wall</em>, de Kai Wiedenhöfer, num trecho restante do Muro de Berlim, 2013. © Kai Wiedenhöfer

Exposição Wall on Wall, de Kai Wiedenhöfer, num trecho restante do Muro de Berlim, 2013.

“Vá correndo para Berlim. O Muro está caindo.” Eram onze e meia da noite da quinta-feira, 9 de novembro de 1989, quando o mundo da Guerra Fria começou a ruir. Kai Wiedenhöfer, então um entusiasmado estudante de fotografia documental em Essen, na Renânia do Norte, fez bem em acatar o conselho quase mandatário do professor e percorreu os 500 quilômetros que o separavam de Berlim. Ele lembra o quanto comemorou “um mundo sem muros, o mundo livre” na festança a céu aberto pela virada histórica.

Júbilo prematuro. Hoje, passados 26 anos, o quadro é de uma humanidade mais aprisionada, de massas de gente encurralada como gado. Enquanto 11 novas muralhas separando regiões ou nações brotaram entre o final da Segunda Guerra e a euforia em Berlim, de lá para cá esse número mais que duplicou. Um levantamento publicado no The Guardian calculou em cerca de 9,5 milhões de quilômetros a soma de novos muros, fortificações, grades e barreiras nacionais construídos apenas na última década.

Kai Wiedenhöfer, palestino em Nazlat Isa, junto ao muro construído em 2004 pelo governo israelense e que seccionou a cidade, separando muitas famílias. Palestina, 2004.

Kai Wiedenhöfer, palestino em Nazlat Isa, junto ao muro construído em 2004 pelo governo israelense e que seccionou a cidade, separando muitas famílias. Palestina, 2004.

Até mesmo o impensável – um Muro de Berlim 2.0 – começa a ser cogitado em meio ao afluxo ininterrupto de refugiados desvalidos às portas da Alemanha. Isso porque uma ala do próprio partido de Angela Merkel, contrária à política de portas abertas da chanceler, estuda propor a blindagem da fronteira oriental do país com uma muralha de arame de aço. Sem falar nas barreiras erguidas às pressas no leste europeu para conter essa gente. E nas edificações militares já construídas em solo árabe: para se precaver dos jihadistas do Estado Islâmico, a Jordânia e a Arábia Saudita coalharam a vastidão desértica de suas fronteiras com centenas de quilômetros de trincheiras, barreiras de arame farpado e um avançado sistema de radar.

Wiedenhöfer, que desde seu batismo de fogo improvisado em 1989 se dedica a retratar o mundo dos desenraizados, mal consegue dar conta de tanto enjaulamento. Após concluir seus estudos de árabe em Damasco, imaginou manter o foco de seu trabalho no Oriente Médio, mas foi ultrapassado pela realidade e acabou ampliando o raio. Sua obra é composta de ensaios de grande fôlego, que se transformam em livros com o selo de qualidade Steidl. A paz perfeita, de 2002, trata da vida na Palestina ocupada entre as duas intifadas; Wall [Muro], de 2007, foca no paredão de concreto que começou a ser erguido por Israel em 2000, ferindo a terra e a convivência humana (e não deve ser confundido com o magistral ensaio do tcheco Josef Koudelka sobre o mesmo muro, também intitulado Wall, e do qual se falará mais adiante. Em O livro da destruição, sobre as consequências dos bombardeios de Israel em Gaza, que teve também importante exposição no Museu de Arte Moderna de Paris, Wiedenhöfer retrata as feridas expostas de um conflito que não consegue cicatrizar.

Confrontier, com título de sentido duplo, é o livro que abarca divisórias no mundo todo. Foi concluído dois anos atrás, mas merece ser revisitado pela relevância e atualidade. Nele, o fotógrafo nos leva do enclave espanhol de Ceuta e Melilla, na costa do Marrocos, cercado de arame farpado de 6,5 metros de altura, à barreira brutalista erguida pelos americanos em Bagdá; da fronteira impenetrável entre as duas Coreias à Nicósia, no Chipre, única capital do mundo separada por um muro; do monótono paredón metálico fincado entre Estados Unidos e México à “Barreira de Separação” israelense. Sem esquecer Belfast, na Irlanda do Norte, que em 2008 retomou a construção de obstáculos entre bairros católicos e protestantes. Nesse mosaico de cidades e vidas partidas, a engenharia de exclusão torna semelhantes geografias distintas.

Kai Wiedenhöfer, marroquinos empurrando pacotes de roupas em direção a uma entrada para o Marrocos a partir do enclave de Mellila, Espanha, 2009.

Kai Wiedenhöfer, marroquinos empurrando pacotes de roupas em direção a uma entrada para o Marrocos a partir do enclave de Ceuta e Mellila, Espanha, 2009.

Kai Wiedenhöfer, limite final da fronteira México-Estados Unidos se estendendo para o Oceano Pacífico, Tijuana, México, 2008.

Kai Wiedenhöfer, limite final da fronteira México-Estados Unidos se estendendo para o Oceano Pacífico, Tijuana, México, 2008.

 

Dois anos atrás, o fotógrafo conseguiu uma proeza: a autorização de Berlim para montar uma exposição no espaço mais cultuado e visitado da cidade, o próprio muro original que manteve os alemães separados por 28 anos. Ou melhor, o que dele foi preservado pelas autoridades com zelo canino. A mostra ocupou um trecho contínuo de 360 metros de extensão na Mühlenstrasse. Foi nessa superfície impregnada de história, à vista de quem por ali transitava, que o fotógrafo montou a exposição Wall on Wall [Muro sobre Muro]. Durante três meses, suas imagens ampliadas em painéis de 3 metros de altura por 9 de comprimento cobriram os famosos grafites desenhados sobre o muro original na euforia da derrubada.

A premiada obra de Wiedenhöfer – Medalha Leica de Excelência, Prêmio World Press Photo, Bolsa W. Eugene Smith, entre outros – costuma ser alvo de protestos e acusada de ter um viés pró-palestino. “Não tenho qualquer envolvimento pessoal nesse conflito”, defende-se o fotógrafo. “Preocupo-me mais em captar o melhor ângulo de uma barreira ou a melhor qualidade de luz”. Mas se de quebra ajudar a derrubar o maior número delas usando a fotografia como instrumento de demolição, melhor. Wiedenhöfer começou a definir sua ojeriza a fortificações que aprisionam, mais do que defendem, na fatídica noite do 9 de novembro, aos 23 anos de idade: “O Muro de Berlim foi a prova viva de que não se consegue resolver um conflito construindo uma muralha. É contraproducente”, repete desde então. “Seja qual for a origem do problema – econômico, étnico, religioso, ideológico – um muro só vai piorar as coisas, pois os clichês e conceitos sobre o inimigo se multiplicarão sem vínculo com a realidade. Como já escreveu Ryszard Kapuściński, consolida-se a ideia de que o que vem de fora, do lado oposto, só pode ser uma ameaça, um sinal de desastre, a vanguarda do Mal”, resume.

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Josef Koudelka, em contrapartida, não milita. “Apenas” fotografa. Mas que fotografia! Não é por acaso que o fotógrafo formado em engenharia aeronáutica se tornou membro da prestigiosa agência Magnum e recebeu a cesta de prêmios indefectível na biografia dos grandes mestres: Cartier-Bresson, Hasselblad, Nadar e National de la Photographie, da França. Seu talento foi descoberto quando registrou a invasão da Tchecoslováquia por tanques soviéticos, em 1968, com o estrangulamento da chamada Primavera de Praga.

Foi uma cobertura de linguagem clássica, feita sob o pseudônimo “P. O.” (de “fotógrafo de Praga”) e lhe valeu a primeira Medalha Robert Capa do Overseas Press Club, concedida anonimamente. Koudelka saiu da Tchecoslováquia ocupada em 1970, recebeu asilo político na Inglaterra e logo foi convidado a juntar-se ao seleto grupo da Magnum. Gypsies, seu seminal trabalho sobre ciganos, seguido de Exílios, compõem uma obra monumental reunida em mais de dez livros.

Wall [Muro], de 2012, é de tirar o fôlego. Publicado pela Aperture com capa gráfica de impacto máximo, o fotolivro contém 56 fotografias preto e branco, formato grande, escancaradas em página dupla. São imagens sombrias, misteriosas, em todas as tonalidades de cinza que a fotografia permite, que induzem à meditação. Koudelka retrata a paisagem de vales e morros da região dilacerada pelo sinuoso muro que separa Israel da Palestina, e a asfixia da vida urbana que ele provoca. Terá 700 quilômetros de extensão se vier a ser completado.

Todas as imagens do ensaio são contextualizadas por legendas informativas, que permitem ao usuário ir além do que vê. Uma oportuna cronologia sobre o conflito e um léxico tão enxuto quanto essencial enriquecem o valor documental da obra.

Josef Koudelka, muro que separa Israel da Palestina, trecho próximo ao Túmulo de Raquel, em Belém, 2009. © Josef Koudelka/Magnum Photos/Latinstock

Josef Koudelka, muro que separa Israel da Palestina, trecho próximo ao Túmulo de Raquel, Belém, 2009.

 

A estrutura do muro, que para uns é uma “Cerca de Segurança” e para outros um “Muro do Apartheid”, varia de acordo com o grau de segurança que pretende impor. Podem ser blocos de cimento e pedra, cortinas de espiral de aço, muros protegidos por mais muros. Mas é em Jerusalém e no seu entorno, berço da atual onda de matança entre palestinos e judeus, que a asfixia é mais palpável.

David Shulman, professor de Estudos Humanísticos na Universidade Hebraica de Jerusalém e ativista da Arab-Jewish Partnership, descreveu em artigo no The New York Review of Books seu despreparo para o “tenebroso sentimento de finalidade, de impasse psíquico e corpóreo, que se abateu sobre mim quando de repente me vi face a face com esses blocos de concreto de nove metros de altura”. Ele conta que a pessoa que o acompanhava murmurou, após longo silêncio: “Um dia essa monstruosidade vai ser derrubada como o foi o Muro de Berlim, e quando isso ocorrer as pessoas dos dois lados haverão de cantar e dançar”. Para Shulman, a imagem mais sombria de Wall é a que encerra a publicação: “O Muro à esquerda, o Muro à direita, um vazio ameaçador no meio. Um lugar sem vida construído de concreto”. Na foto, apenas duas pequenas placas indicam que por perto pode haver vida humana: uma aponta o caminho de Jerusalém, a outra indica o caminho ao reverenciado Túmulo de Raquel, nas cercanias de Belém.

Muros são transitórios. Uma vez derrubados, todos se perguntam por que permaneceram de pé tanto tempo e por que tantos se curvaram à sua existência. As imagens de Wiedenhöfer e Koudelka constituem um contundente libelo fotográfico contra o renascimento de muralhas no século 21.///

 

Dorrit Harazim é jornalista e documentarista brasileira. Nascida na Croácia durante a II Guerra Mundial, talvez venha daí seu interesse pelo papel da fotografia na história e pela história da fotografia como meio de comunicação.

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